04/09/2013

Alaska , a última fronteira. Matéria de nosso correspondente do Caribe e Alaska: Mr. Igor C. Mestriner.

Alaska, a última fronteira. Tais são os dizeres abaixo dos números nas placas dos automóveis que circulam pelo maior de todos os estados dos Estados Unidos da América. Nem mesmo nos meus mais remotos sonhos marítimos sequer imaginei que um dia navegaria por essas frias, misteriosas, perigosas e interessantíssimas águas. 



















Cheguei à encantadora cidadezinha de Homer, na Península do Kenai por volta das 3h da madrugada do dia 18 de Junho após passar o dia todo em trânsito vindo de New Port, Rhode Island, do outro lado do imenso país. O sol seguia alto no céu dando sequer sinal algum de que baixaria em algum momento... e tal foi minha primeira impressão dos 59⁰ de Latitude Norte onde eu agora caminhava tranquilamente metido em minhas botas e trazendo o velho saco de marinheiro ao ombro. Não fazia frio ou calor, o dia, digo, a noite estava linda e o porto pesqueiro junto ao final do chamado Homer Spit impressionou-me logo de saída com a quantidade de embarcações docadas ali e as outras tantas que entravam e saiam pela única e estreita entrada do porto que, aquelas alturas, eu nem sabia pra que lado ficava... mas o tempo e a boníssima gente do lugar não tardou a apresentar-me o pedaço, assim como parte das aguas locais.
Nordwind foi construída na Alemanha no ano de 1939, na cidade de Bremen. O construtor, H. Gruber, e sua equipe construíram o barco para a Marinha Alemã da época e, como todos sabem, aquela foi uma época bastante séria da história daquele país portanto, o barco era solido! Mais de 80 pés de madeira sustentadas por costelas de ferro fundido, belamente ornamentada com carpintaria de ponta em seu interior luxuoso, armada em Yawl, como muitos W. Fifes, entre outros tantos belos clássicos costumavam ser. Barco lindo, cheio de histórias não contadas e detalhes interessantes em bronze e madeira, assim como porcelanas nos banheiros, daquelas azul e branco, que davam gosto de contemplar e pensar em quem já havia escovado os dentes ali...
Teríamos menos de um mês para reanimar o grande barco que ali literalmente hibernava(tipo um urso!) e levar o dono e sua simpática esposa para um cruzeiro de exploração pela península do Kenai por 10 dias, após o qual a embarcação seguiria para Vancouver, no Canadá, onde a mesma enfrentaria outro longo e frio inverno sem ninguém a bordo. Assim sendo,  nos enfurnamos a trabalhar e não paramos nem mesmo no feriado da Independência norte-americana – 4 de Julho e, ainda assim, a turma nos trouxe cachorros-quentes e “biscoitinhos da Liberdade”, muito gentil da parte deles por sinal! Fiz bons amigos ao longo dos muitos dias de trabalho pesado que realizei e se tem uma coisa que seja verdade sobre essa gente é o fato de eles respeitarem e tratarem com consideração aqueles que pesado trabalham.  Gente como o bom Dave do “Ashore watertaxi”, ao longo das semanas, me presentearam com carne de alçe, ostras frescas da fazenda-ali-do-outro-lado-da-baía, mexilhões, bacalhau negro defumado que eu-nunca-havia-comido-igual! Salmão e salmão e mais salmão... Nunca jamais havia pensado que comeria ou se podia comer tanto salmão e tão fresco...  Mamma mia!!! E também foi a vez do Senhor Mogar, o genial eletricista, levar-me pra jantar num restaurante de verdade por aqui, ir num bar, ouvir música local e falar com as pessoas que jamais-viram-um-brasileiro na vida. Tudo muito divertido e bastante tocante a forma como fui muitíssimo bem recebido aqui em Homer, no Alaska!
Aqui a coisa funciona nos termos da pesca comercial. Existem barcos e mais barcos entre 30 e 50 pés totalmente preparados para pescar toneladas de salmão de primeira qualidade pelas seis semanas por ano onde tal prática é permitida.  A maré é imensa, passando fácil dos 6 metros de amplitude, são quase 4.4 pés de agua subindo ou descendo a cada hora e daí o amigo já consegue imaginar as correntes do lugar. São perigosas as águas que esses homens e mulheres se aventuram para buscar seu peixe e também aqui se pratica aquela perigosíssima “pesca mortal” do caranguejo que tem até programa de tv a respeito, mas isso é no inverno e Deus me ajude de passar o primeiro inverno da minha vida tropical aqui! 
Era o dia da partida, o proprietário estava para aparecer a bordo a qualquer momento aquela manhã ensolarada e todos estávamos em nossos uniformes. Sabe como é, a vida de marinheiro tem dessas também... Veio o homem, carregamos sua bagagem a bordo, o mesmo desembarcou depois de meia hora e, trazendo sua senhora pelo braço, foi visitar Homer e seus pequenos encantos. Encantadora a pequenina Homer e fascinante é a palavra que me vem para descrever o Spit, esse prolongamento de terra adentrando o mar quase que em linha reta por cerca de 6 milhas, criando assim um porto ideal e único para aqueles que aqui vivem das iguarias que somente o Oceano sabe produzir e prover.
O zarpe aconteceu por volta das sete da “noite” do dia 11 de Julho, o céu estava claro como somente um dia de verão saber ser e as máquinas que tão bem preparara para nossa navegação realizaram seu trabalho sem maiores incidentes. Ancoramos a primeira noite ao largo da pitoresca comunidade pesqueira de Seldovia e ali passamos a noite sem desembarcar. Acordamos às quatro e meia da manhã seguinte e “motoramos” ao redor da ponta “Adam”, fazendo assim proa a deixar as ilhas “Chugach” a bombordo. O tempo estava bom, o mar bastante liso e quando adentramos o primeiro fiorde de nossa aventura, o “Northwest Fiord”, todos aqueles dias de muito trabalho e noites mal dormidas pois-nunca-fica-escuro fizeram sentido de uma tacado só! ...Ô coisinha mais linda que é o gelo!
Aquele paredão azul silencioso, aquelas montanhas nevadas se erguendo até onde dói o pescoço de tanto olhar pra cima, aquele verde de inverno e todo aquele gelo e mais gelo por ao redor do barco, aquilo sim fez o sangue correr nas veias verde-amarelas do marujo aqui como há anos eu não sentia! Como é lindo esse encontro quase que desafiante do homem com a natureza onipotente bem ali na vossa frente! E o melhor é que o dono do barco queria mais e queria chegar mais perto e empurrar gelo com a proa e, uma vez ali, foi pedido que o bote fosse lançado e lá me fui com o proprietário, empurrando gelo e achando caminhos entre essas maravilhas flutuantes para que o mesmo tirasse as fotos que vocês agora veem. Tudo bom demais, fascinante demais e, quando a proa chegava perto daquelas paredes de muitos mil anos de gelo sólido, gelado demais!
Havia focas a descansar sobre o gelo flutuante, pássaros mil, a tal águia da cabeça pelada símbolo dos Americanos (um animal bastante imponente devo dizer), baleias e seus filhotes a nadar tranquilamente, golfinhos de coloração negra e branca e bico bastante curto, peixe saltando por todas as partes, tudo muito espetacular. E assim foi o ritmo e assim foi o tom de nossa viagem pelos fiordes da península do Kenai. Todos os dias acordávamos bem de manhãzinha e, com o potente motor Man de 6 cilindros turbo com seus velhos 400 cavalos de potência, conduzíamos aquela embarcação histórica de madeira sobre as águas do Alaska até outro fiorde e mais uma geleira e outra! Tinha dia que navegávamos a 3 fiordes diferentes um mais lindo que o outro e o barulho de trovão, o estouro que no gelo faz quando se rompe, aquele tiro de canhão seguido do desabamento de toneladas de gelo que levam cerca de alguns segundos após cair na água para emitir o som perturbador de coisa-grande-caindo-na-água. As forças da natureza se pronunciando e você ali, testemunha pequenina e humilde daquele espetáculo natural, por vezes assustador, totalmente sem igual. Um privilégio, isso é aquilo que essa viagem me foi. 
A madrugada do dia 19 de julho foi-me especialmente marcante. Às 19:20h da noite adentramos uma baía muito pequenina após negociar uma entrada até perigosa, eu diria. Uma “cove” como chamam eles , localizada na parte sul de “Derickson Bay”. Haviam 3 metros abaixo de nossa quilha e um longo cabo foi mandado à terra junto à minha pessoa para evitar que o barco girasse sobre as rochas em todo o redor. Uma vez seguramente amarrada a embarcação à duas árvores, aproveitei que ali estava, puxei o bote sobre as rochas que a maré ainda baixa expunha e fui explorar aquele lugar tão interessante. Mal havia rompido entre os ramos das árvores da subida da costa, adentrei o campo nem 300 metros e lá estava o gelo, espalhado por sobre a grama, amontoado junto à encosta dos pequenos morros. Havia até um rio que se acumulava ali antes de seguir por terras mais baixas até o mar, não distante nem meia milha. Era o lugar perfeito e madeira não faltava ali! Retornei ao barco e chamei a todos, “temos de acampar aqui, o lugar é perfeito e temos tudo o que precisamos a bordo!”.  A turma meio que não se animou muito e desconversou o caso. Eu, sendo como sou, insisti, mas ninguém realmente se manifestou contra ou disse que sim. E terminou comigo num clássico “então vou eu!” e fui-me. Agarrei o machado de emergência de bordo (no caso um grandão de duas mãos bem daqueles bom de rachar lenha!), uma garrafa grande de água, uma salsicha, uma cerveja (claro, né, gente, por favor!), isqueiro, saco de dormir e pedi passe de desembarque pela noite.
-          Tem ursos lá fora.
-          Melhor que tenha, jamais vi um!







E assim construí, digo, arrastei umas toras, empilhei umas pedras, cortei várias madeiras que achava secas e boas pra queimar, fiz fogo, preparei o espeto, assei a salsicha, tomei a cerveja que botei pra gelar naquele gelo mencionado e acumulado lá; dormi no saco de dormir abaixo das e observando as mesmas estrelas que o céu do Alaska tinha para mostrar-me aquela noite.
Não vi urso algum, só rastros dos mesmos quando explorava as redondezas do meu acampamento selvagem, mas ainda assim foi ótimo! Barcos por vezes te colocam em situação de convivência intensa com pessoas que não necessariamente se gostam o que, convenhamos, é normal. Você não precisa amar seus companheiros de trabalho para realizar um bom trabalho com eles. E se, todos gostarem de todos no grupo, ainda melhor, pois o trabalho se realiza de forma mais leve, harmônica e divertida. Oras, quem entre nós não gosta de trabalhar com amigos e afins?! Eu precisava de um tempo a só comigo mesmo e também eles, a tripulação, precisava de um tempo sem mim. Vento aqui nao há, exatamente como me disseram todos os pescadores e capitães das balsas motorizadas de embarque-desembarque pela rampa da proa e rebocadores que conheci em Homer e a turma da coberta não andava nada feliz com aquilo. Nenhuma vela foi içada, a não ser por meia hora logo na saída do porto de  partida e, após panejar a buja e a mezena por alguns momentos, os poucos panos foram baixados e dali por diante apenas o motor roncou e a hélice impulsionou e os dois geradores mantiveram tudo funcionando, exatamente como eu havia preparado os mesmo para fazer com a devida atenção e cuidados não havia nem um mês atrás... e eu estava bastante feliz com aquilo.
A única coisa que não funcionou mesmo foi a rapaziada dos serviços de imigração canadense a qual entrou em greve pouco antes do Igor dar entrada no visto dele, o que não só rendeu uma falta de visto de entrada para ele, como também atrasou a viagem do nosso terceiro tripulante em mais de 20 dias, o que botou um peso muito maior nas minhas costas pois o Capitão havia rompido suas próprias costas anos antes, não podia pegar peso e sobrou pro meu lado e era comigo mesmo a parada. Por fim, o barco foi, seguiu viagem e eu não pude seguir adiante até o Canadá. Cada qual sabe porquê fazer ou entrar em greve e eu não culpo ninguém por isso. Aconteceu justo quando era minha vez de ir navegar as águas deles e paciência. Devo dizer, no entanto, que o pessoal da Embaixada Brasileira de New York me foi muito solícita e prestativa, fornecendo-me a orientação necessária nas horas de dúvida e até indignação. Não pude seguir adiante num trabalho o qual vim até aqui para realizar e isso lá molesta, sabe?! Paciência...
Terminei não indo ao Canadá, ao invés disso desembarquei no mesmo porto, dia e hora que o dono do Nordwind e sua esposa, e após uma boa refeição num dos únicos restaurantes do diferente entreposto de Whittier, subimos todos a bordo da histórica Ferrovia do Alaska e, de trem, seguimos para a maior cidade do maior estado do pais com mais Estados Unidos, lá mesmo onde tudo começou: Anchorage. Chegava ao fim mais uma viagem... ou não!
 Epílogo:
Comprei uma van verde metálica bem da grande dessas americanas dos anos 90. Não era bem esse o meu plano, mas, por 500 dólares, como é que o sujeito não compra uma van e roda o Alaska?!? Minha querida namorada tirou um mês de ferias do Super-Yacht de 116 pés em que ela trabalha como imediata e voou pro Alaska. Retornamos a Homer, botamos um colchão de casal, lençóis e cobertores, dois travesseiros e fronhas que compramos no Exército da Salvação por 25 dólares tudo e, agora, vivemos nosso amor pelos últimos dias do verão dessa terra fantástica, livre e selvagem, ficando na casa dos bons amigos que fizemos aqui, acampando, dormindo na nossa van, fazendo fogueiras e churrascos na companhia de pessoas únicas e diferentes de todo daquilo que conhecíamos. Pescadores comerciais, caçadores de alçes e ursos e bodes montanheses e lobos e tudo o mais que o governo, com todas as restrições e legislações possíveis, ainda deixa dar tiro nos bichos; gente que trabalha a terra, que constrói casas de madeira, que opera pás-carregadeiras e outras máquinas pra remover neve no inverno que eu sequer imagino, pilotos de hidroaviões desses que tem aqui como eu nunca vi em lugar algum do mundo. E claro, cruzando a sublime baía de “Kachemak” nos diferentes barcos dos amigos, comendo salmão e mais salmão e... “– Quer mais salmão?!” .  Claro...
Há um barco esperando por um marujo como eu na costa Leste do imenso país norte-americano. Há vários, na verdade. Basta ir até lá, conhecer os marinheiros, conversar com as tripulações, ser apresentado aos capitães, fazer os amigos que você nem sabia que tinha e estavam lá esperando só você chegar. Por hora ficamos por aqui pois aqui está bom. Mais um mês apenas e o frio e o gelo tomarão esse lugar e tudo ficará escuro por muitos meses, melhor aproveitar essa inesquecível terra antes que a longa noite cubra tudo, campo, montanha, mar e floresta, com sua gélidas trevas. As flores estão por toda parte aqui para nos lembrar exatamente disso: que depois de todo longo inverno vem sempre o verão, e o verão é a celebração da vida em seu ápice, seu Solstício. Aproveite a vida enquanto o sol brilha e faz calor!
Bons Ventos a Todos.        
        Igor Mestriner
  Agosto de 2013 – Homer -Alaska


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