26/05/2015

A verdade sobre as expedições a América, o dinheiro e o mercado.

A invenção do mercado altDe onde veio a bolsa de valores? Um banqueiro italiano pagou 1,5 milhões de euros para Pedro Álvares Cabral ir até à Índia. Foi o primeiro passo para uma descoberta inesperada: a bolsa de valores, que surgiria de um pântano gelado. Tudo graças ao tatatataravô de Chico Buarque. Bartolomeo Marchionni tinha uma fortuna de 150 milhões de euros, em dinheiro de hoje. E mantinha uma carteira de investimentos diversificada. Este florentino radicado em Lisboa, além de ser dono de um banco em Florença, traficava marfim, ouro e escravos na costa africana. Depois, entraria numa empreitada muito mais arriscada: tornou‑se o maior financiador privado da expedição de Pedro Álvares Cabral à Índia. Passámos a infância a ouvir só um excerto dessa aventura. Antes de partir para a Ásia, a frota faria uma escala de duas semanas no sítio onde hoje se situa Porto Seguro – atracaram no dia 21 de abril de 1500, no acontecimento que levou a que por ali se fale hoje português e não espanhol ou holandês. Porém, não ficaria por aí. No caminho entre o litoral baiano e a Índia, a expedição ainda encontraria outra terra nova para os europeus, Madagáscar. O descobridor oficial não foi Cabral, mas Diogo Dias, capitão do único navio da frota que ancorou por lá. Mais do que uma expedição, aquilo era uma megacorporação. Cabral, o jovem CEO, de 33 anos, tinha negociado um pagamento de dez mil cruzados pela empreitada, milhão e meio de euros em dinheiro de hoje. Os seus diretores, os capitães dos outros doze navios, ganhavam 12 500 euros por mês; cada um dos 1200 marinheiros, 1500 euros. Uma grande empresa, fundada com o objetivo de lucrar com um negócio que prometia ser o mais rentável da história até então: o comércio de especiarias orientais sem intermediários. Uma paixão ruinosa As especiarias da Ásia já faziam parte da dieta dos europeus desde antes da fundação de Roma. Num mundo sem grandes opções de lazer nem drogas refinadas, boa parte da diversão dos endinheirados era brincar com as explosões de sabor que o cravo, a canela, a noz‑moscada e a pimenta causam nas papilas gustativas. E havia muito quem se dedicasse a isto. Enquanto Jesus fazia as suas pregações na Galileia, o historiador Plínio temia pelo futuro do Império Romano. A elite estava a gastar todo o ouro de Roma em especiarias do Oriente. Não era exagero. Nas palavras do historiador Frederic Rosengarten, “os romanos foram os mais exagerados utilizadores de aromatizantes da história”. Usavam qualquer combinação possível não só na comida mas também em vinhos e perfumes. Os mais excêntricos dormiam em travesseiros recheados de especiarias, acreditando que a sua fragrância curava a ressaca. Como notou Plínio, esses hábitos eram despudoradamente caros. As especiarias passavam por dezenas de intermediários no caminho entre a sua terra natal, o sul da Ásia, e a Europa, e o preço subia cada vez que mudavam de mãos. As especiarias podiam não valer o seu peso em ouro, mas chegavam lá perto: quando os visigodos sitiaram Roma, em 408 d.C., disseram que deixariam a cidade em paz em troca de uma certa quantidade de ouro, prata... e especiarias. Os romanos perderam os seus travesseiros antirressaca a favor dos invasores e a Idade Média nublou os ares da Europa, mas o comércio de especiarias continuou tal como antes: os indianos enchiam barcos com cravo, canela, noz‑moscada e pimenta e velejavam até à península Arábica para venderem o seu ouro em pó. De lá, as especiarias iam no lombo de camelos até ao Egito, onde eram revendidas a comerciantes do Mediterrâneo no porto de Alexandria. Porém, não era mercadoria para qualquer comerciante. Só os de Veneza punham as mãos nas especiarias. Tinham negociado um monopólio com os egípcios. Só ancorava em Alexandria quem fosse veneziano. Quem quisesse comprar especiarias tinha de ir até Veneza e pagar o que esses intermediários cobrassem. Não foi por acaso que a cidade da praça de São Marcos ficou tão bonita, nem que a peça de Shakespeare sobre um comerciante sem um pingo de carácter se chamou O Mercador de Veneza. O monopólio, na verdade, não era assim tão mono. Também chegavam especiarias por terra, fora do eixo Egito–Veneza, principalmente através de Constantinopla (Istambul). Porém, em 1453, o Império Otomano invadiu e tomou o controlo da cidade, fechando as portas desse comércio aos europeus. Nessa altura, os mercadores de Veneza ficaram com o mercado todo para si. O governo egípcio percebeu logo a oportunidade e, assim que Constantinopla caiu, passou a cobrar 30 por cento de imposto sobre o valor das especiarias que chegassem aos seus portos. O preço final na Europa, que já era alto, ficou escandalosamente alto. Tão escandaloso que encontrar uma maneira de comprar especiarias diretamente aos indianos, sem intermediários, se tornou uma obsessão. A única forma seria descer pelo Atlântico, contornar África e entrar no oceano Índico. No século XV, isso era tão complicado como mandar uma expedição tripulada a Plutão. Ninguém tinha contornado África antes, nem se fazia ideia se isso era fisicamente viá­vel. No entanto, a possibilidade de lucro era tão grande que seria insanidade não tentar. Portugal saiu à frente na corrida pelo caminho das Índias. Com vista privilegiada para o Atlântico e caravelas – os seus incríveis barquinhos capazes de navegarem contra o vento –, os portugueses já tinham colonizado os arquipélagos dos Açores e da Madeira desde o começo do século XV. Nada mal se considerarmos que os dois ficam quase a mil quilómetros da costa europeia. Os arquipélagos eram úteis como escala de abastecimento para expedições cada vez mais ao sul da costa africana, e as caravelas foram descendo, descendo, até que uma dessas frotas, a do capitão‑mor Bartolomeu Dias, descobriu que, sim, a certa altura a África acabava. Ao fazer a curva lá em baixo, em 1488, Bartolomeu sofreu vários dias de tempestades e batizou esse lugar, onde a África ocidental acabava, como “Cabo das Tormentas”, já que o encontro de correntes oceânicas do Atlântico e do Índico torna as águas muito traiçoeiras. Esperança milionária O rei de Portugal, D. João II, preferiu renomeá‑lo Cabo da Boa Esperança. Esperança de “meter as mãos na garganta de Veneza”, como diziam os nobres portugueses da época. E, com isso, fazer o dinheiro investido nas expedições gerar muito mais dinheiro. Bartolomeu Dias fez a curva, mas de lá voltou para Portugal: a sua missão era simplesmente encontrar o fim de África. Dez anos depois, Vasco da Gama contornaria de vez o cabo. A sua expedição chegou a fazer mais de dez mil quilómetros em mar aberto sem escalas, um feito que entraria para o Guinness Book do século XV, caso existisse um. Depois de dez meses a navegar, Vasco da Gama chegou a Calecute, o centro nevrálgico do comércio de especiarias, na costa oeste da Índia (não confundir com Calcutá, que fica do outro lado do subcontinente). Era a glória, o maior feito da humanidade até então. Porém, o que os indianos viram foi outra coisa: um grupo de mendigos que aportavam, sujos e mal vestidos, ao lugar mais importante do mundo – praticamente uma comunidade hippie a chegar a Manhattan de jangada. Vasco da Gama levava roupas, jarros e mel para usar como moeda de troca. A corte do samorim de Calecute riu‑se. Disseram‑lhe que ou trazia ouro e prata, ou não haveria negócio. Mesmo assim, não voltaram de mãos a abanar. Os chapéus, as calças e o mel que levaram podiam não valer grande coisa em Calecute, mas as especiarias eram ainda mais baratas. Por isso, conseguiram embarcar algumas sacas de pimenta, cravo, canela e gengibre, e levantaram as velas para enfrentarem mais um ano de mar até Lisboa. Não era uma viagem simples. Numa época em que não havia frigoríficos, só havia duas maneiras de transportar a comida: ou com muito sal, ou conservada pelos próprios anticorpos da comida – ou seja, levar os animais vivos no barco e mantê‑los assim até a altura de os comer. Por isso, levavam gaiolas cheias de galinhas e coelhos amarradas aos mastros. Barris com camadas intercaladas de peixe seco e sal completavam o suprimento de proteínas da tripulação. Depois dos primeiros meses, as galinhas e os coelhos já tinham acabado. A solução era alimentarem‑se com os peixes, que os marinheiros lavavam com água salgada, para os deixarem menos salgados. Usar água doce para isso, nem pensar, já que o racionamento era de guerra. Se bem que chamar àquilo água doce é um eufemismo. Se deixar água destapada no frigorífico, ela fica com um sabor estranho. Imagine então o que acontece com a água parada durante meses num barco cheio de ratos. Cheirava mal... A solução era misturar a água com vinho para desinfetar, deixar o líquido relativamente menos intragável e, claro, baixar o stress. Havia muito stress. A tensão era de presídio. É surpreendente que, depois de passar quase dois anos a navegar, Vasco da Gama tenha conseguido voltar com dois dos quatro barcos que tinham saído de Portugal e 55 dos seus 170 homens. Mesmo assim, valeu a pena. Não se sabe a quantidade exata de especiarias que o navegador trouxe, mas os registos mostram que uma saca de pimenta que custava 16 ducados em Veneza saía pelo equivalente a dois em Calecute. Um lucro de 700%. altEntra o mercador de Florença Assim que Vasco da Gama regressou, em julho de 1499, a Coroa portuguesa começou os preparativos para uma segunda expedição, portentosa, com 13 navios e 1200 homens. Ia carregada com o ouro e a prata que o samorim queria em troca das especiarias, mais uma quantidade de nobres para tratarem da parte diplomática e os melhores navegadores do reino. Entre eles, o mesmo Bartolomeu Dias que tinha contornado o Cabo da Boa Esperança pela primeira vez. O problema é que tudo isto custava mais do que a Coroa podia pagar. D. Manuel precisava de ajuda. A própria expedição de Vasco da Gama contou com dinheiro privado, mas esta era a maior empreitada que a Europa lançaria no Atlântico. Sem o dinheiro de grandes investidores, as caravelas nem sequer teriam sido construídas. É aqui que entra Bartolomeo Marchionni, que, com outros banqueiros, ajudou a financiar a operação. Uma aposta de alto risco, mas que deu resultado. O maior efeito colateral da expedição, aportar no Brasil e garantir a posse daquelas terras para Portugal, foi bom para Marchionni, que se tornaria um dos principais comerciantes de pau‑brasil na Europa. Na Índia, a expedição acabou por ser um desastre diplomático. De início, o samorim até recebeu bem a frota. Autorizou Cabral a montar um forte e um armazém de especiarias em Calecute e tudo o mais. O problema é que o forte sofreu um ataque patrocinado por comerciantes árabes que vendiam as especiarias através da rota tradicional, via Egito, e não estavam nada dispostos a perder terreno para os portugueses. Cabral queixou‑se ao samorim, mas o soberano lavou as mãos. O descobridor do Brasil mandou os seus navios bombardearem Calecute, como represália. Os indianos contra‑atacaram e Cabral teve de abandonar o forte e apressar o regresso, até para não sair da vida logo agora que tinha acabado de entrar na história... Dos 13 navios originais, só voltaram sete, com metade dos homens. Mesmo assim, o navegador chegou a Lisboa com 700 toneladas de especiarias, a maior parte pimenta. Foi o suficiente para que a expedição desse lucro. Assim, mesmo com os problemas sérios de relacionamento entre Cabral e o samorim, agora não havia retorno: o comércio de especiarias sem intermediários era viável. Bartolomeo Marchionni escreveu aos seus amigos banqueiros de Florença contando que a empreitada tinha sido um sucesso. O dinheiro começou a fluir. Em 1502, Vasco da Gama partiria pela segunda vez para a Índia, desta vez com 20 navios e bem armado. Chegou a mandar o samorim expulsar as quatro mil famílias de comerciantes árabes instaladas na região de Calecute. Era isso ou a cidade seria bombardeada novamente. O samorim pagou para ver e a cidade foi atacada. Os árabes retaliaram, mandando 30 navios de guerra contra a esquadra portuguesa. mas os canhões de Vasco da Gama falaram mais alto. Os portugueses massacraram os muçulmanos e conseguiram estabelecer um forte e um complexo de armazéns em Cochim, uma cidade próxima. Vasco da Gama voltou a Portugal em 1503, com 13 dos 20 navios (o que não era de todo mau para os padrões da época) e 1700 toneladas de especiarias na bagagem, praticamente a mesma quantidade que Veneza importava do Médio Oriente por ano. No entanto, a margem de lucro dos portugueses era estupidamente maior, cerca de 700%, contra os 50% ou 60% dos venezianos, que pagavam muito mais caro pela mercadoria no Egito. Portugal mandaria 705 navios para o Oriente ao longo do século XVI. Estabeleceria colónias firmes, como a de Goa, que se tornou um pedaço da península Ibérica na Índia (ainda hoje falam português por lá), e os negócios do país do outro lado do mundo acabariam por ir muito para além de trazer especiarias de rico para a Europa. Portugal começou a lucrar comprando e vendendo dentro da própria Ásia: levava ópio de Goa para a China, onde também fixou outra colónia próspera e até hoje lusófona, Macau, e revendia seda e porcelana chinesa em troca de ouro num lugar que nenhum europeu tinha antes pisado: o Japão. Por sinal, a relação com os japoneses foi tão estreita que algumas palavras da nossa língua ainda hoje estão no idioma deles. A história mais divulgada, a de que arigatô vem de “obrigado”, é lenda. Os linguistas já concluíram que o “obrigado” dos japoneses é mais antigo do que o encontro com os portugueses. Mas biidro (vidro), shabon (sabão), marumeru (marmelo), kirishtan (cristão) e dúzias de outras palavras estão aí para comprovar o laço. Outra palavra que chegou lá por essa via foi Oranda (Holanda). Não por acaso: Portugal praticamente monopolizou o comércio no Índico até o fim do século XVI; só Espanha representava concorrência. Os holandeses, porém, descobririam rapidamente uma arma letal, tão poderosa que deixaria o resto do mundo à sua mercê. Uma arma sem pólvora, porém muito mais explosiva: o mercado de ações. A união faz a bolsa A bolsa de valores veio do pântano. Do pântano que a Holanda era há mil anos. Um quinto do território atual do país estava debaixo de água e o resto sofria com as cheias, um ano sim e o ano seguinte também. É natural: a Holanda fica encurralada entre o mar do Norte e a foz de dois rios gigantes, o Reno, que desce da Alemanha, e o Mosa, que chega de França. O delta dos dois junta‑se no leste dos Países Baixos, formando um labirinto de rios menores. Ninguém deveria viver naquela região, e tirando meia dúzia de pescadores, ninguém vivia mesmo. Foi a sorte grande do lugar que viria a chamar‑se Holanda: o feudalismo não fincou raízes por lá. Enquanto no resto da Europa os agricultores viviam em estado de semiescravidão, trabalhando para poucos e gordos latifundiários (também conhecidos como “nobres”), na molhada Holanda muitos eram donos do próprio nariz: plantavam, pescavam, vendiam e compravam por conta própria. Não que aquilo fosse uma comunidade hip­pie medieval. Também havia nobres, donos de terras maiores, mas o modelo feudal de trabalhar na terra em troca de casa e comida não pegou. Boa parte do trabalho, afinal, era tirar a própria Holanda de debaixo de água para terem onde plantar e criar gado. Para tirar terras de debaixo de água ou afastar a ameaça constante das cheias nas partes secas, só com muito trabalho coletivo. Os holandeses aprenderam a unir‑se para domarem a natureza. Construíram represas, milhares de canais para drenar a água das terras aráveis e moinhos para bombear essas águas. Os nomes das maiores cidades da Holanda ecoam esse passado. Dam significa “represa”: Amesterdão é a represa do rio Amstel e Roterdão a do rio Rotte. Os apelidos típicos dos Países Baixos também são molhados: Van Damme (“da represa”), Van Dijck (“do dique”). Os séculos de trabalho em equipa fixaram um carácter democrático e humanista na região. Um ditado holandês ajuda a entender o espírito: “Deus criou o mundo; os holandeses criaram a Holanda.” Numa cultura destas, em vez de feudos enormes, havia propriedades divididas entre os homens que ajudaram a tirá‑las de debaixo de água. Em vez de trabalho em troca de comida, havia trabalho em troca de salário, mais o grande efeito colateral dessa prática: um comércio vivo. Enquanto no resto da Europa a circulação de dinheiro entre os mais pobres caía em desuso, já que ninguém o tinha, nos Países Baixos era o centro da economia. Essa mistura de engenho, trabalho coletivo e economia voltada para o comércio transformou o país numa ilha de capitalismo. Quando o Renascimento começou a aparecer no Velho Mundo, a Holanda já ia à frente. Tudo acontecia a um ritmo acelerado. A pesca, por exemplo, já era industrial na década de 1500. Os holandeses tinham transformado os seus barcos em fábricas: eram projetados de modo a que a tripulação pudesse pescar, limpar e armazenar os peixes em barris de sal a bordo. Isso permitia que cada navio passasse dois meses em alto‑mar pescando ininterruptamente, com tripulações de 20 a 30 homens. Em 1560, a Holanda tinha 400 destes barcos‑fábrica, a maior parte dos quais eram propriedade de investidores urbanos. A criação de gado também era industrial. Apesar da imagem bucólica das vacas holandesas, o povo dos Países Baixos foi pioneiro na criação de gado confinado, em que o animal vive trancado num cubículo, entupindo‑se de ração até ir para o matadouro. Um péssimo negócio para a vaca, mas ótimo para quem a cria: os animais engordam mais rapidamente e a produtividade da carne aumenta. A agricultura também entrou nessa onda. Os holandeses importavam grãos e deixavam a terra para culturas mais valiosas: cânhamo para as velas dos navios, lúpulo para as fábricas de cerveja, linho para os vestidos das mulheres (mais tarde, viriam o tabaco e as tulipas). Tudo isto transformou a Holanda de um pântano pegajoso numa potência económica. Em 1581, já era uma república, a primeira na Europa desde que Roma se tornou oficialmente uma ditadura, em 27 a.C. Em 1595, só Amesterdão controlava um volume de comércio maior do que o de Inglaterra e o de França juntas (mesmo tendo um PIB muito menor). Porém, a hora da Holanda ainda não tinha chegado. O comércio mais lucrativo do mundo, naquela altura, estava nas mãos dos portugueses (e de Espanha, que tinha anexado Portugal em 1580). Só os ibéricos compravam especiarias diretamente na fonte para voltar a vender na Europa. altMPB e um livro decisivo Naquela época, mesmo no final do século XVI, os holandeses já sabiam como navegar até ao oceano Índico. É que outro dos produtos de exportação do país eram os marinheiros, calejados pela cultura pesqueira dos Países Baixos. O que não faltava nos navios de Portugal era holandeses. Um deles era conhecido em Lisboa como Arnaud de Hollanda, um sujeito nascido em Utreque, a sul de Amesterdão. O marinheiro participou numa viagem portuguesa ao Brasil em 1525, fixou residência em Pernambuco e deu origem à família Buarque de Hollanda. Todavia, importante mesmo para a história do Brasil foi um certo Jan Huygen van Linschoten, um homem tão fundamental para o que viria a ser o mercado financeiro do século XXI como o tatatatataravô de Chico Buarque para o que viria a ser a Música Popular Brasileira, mas com uma participação mais ativa. Jan Huygen passou nove anos a fazer a ponte marítima Portugal–Índia em navios lusitanos. Quando voltou para a terra natal, lançou um livro bombástico, contando tudo o que os portugueses tinham aprendido em quase um século de comércio com o Oriente: rotas de navegação, direção dos ventos, mapas dos melhores lugares para comprar especiarias, tabelas de preços dizendo quanto ouro levar para comprar tantos sacos de pimenta, cravo, canela ou noz‑moscada... Só faltou encartar um cupão de desconto e dar um GPS como brinde. O livro, chamado Relato de uma Viagem pelas Navegações dos Portugueses no Oriente, veio a público em 1596. Mal o livro saiu, os holandeses começaram a içar velas para tentar a sorte no oceano Índico. Em 1600, já havia seis empresas na Holanda a operarem navios mercantes para a Índia, seis “Companhias das Índias”, nome pelo qual esse tipo de empreitada entrou para os livros de história. O livro de Huygen, por sinal, tinha chegado a Inglaterra, que também fundaria a sua Companhia das Índias no ano de 1600. Começava a corrida das especiarias. O maior problema nessa corrida era arranjar a gasolina, o dinheiro para financiar as expedições. A fórmula tradicional era a portuguesa: reunir banqueiros, contrair empréstimos, pedir ao rei... Porém, mesmo com as promessas de lucro imenso, não era muito fácil encontrar gente disposta a correr o risco, principalmente num país sem o know‑how dos portugueses para grandes navegações. Dos 22 barcos que tinham saído da Holanda para o Oriente em 1598, só 12 voltaram, um índice de perda que Portugal já tinha superado. Tem de haver poder de persuasão para convencer investidores a arriscar o seu ouro numa coisa destas. A outra solução seria diminuir substancialmente o risco da empreitada, e foi o que eles conseguiram. Como? Reunindo não apenas um ou dois mega‑investidores para pagarem a operação, mas centenas. Cada um daria um pouco de dinheiro em troca de um pouco do lucro, caso ele viesse mesmo a existir. Assim, o negócio deixava de ser tudo ou nada. Se a empreitada ao Oriente fosse por água abaixo (literalmente, com os navios afundados), cada um perderia algum dinheiro. Se corresse bem, toda a gente ganhava. Assim, já dá para conversar... A ideia era exótica para uma Europa que mal tinha saído da Idade Média, mas natural para um país que construiu o seu carácter com base no esforço coletivo. Se o trabalho em equipa tinha escavado os canais e levantado os moinhos que literalmente tiraram o país do fundo do poço, agora o financiamento coletivo levaria os navios do país até ao Índico. A iniciativa partiu do governo holandês. A República uniu as seis Companhias das Índias do país, formou uma grande empresa estatal e convidou a população a tornar‑se sócia. Vinha ao mundo a primeira megacorporação da história: a Vereennigde Nederlandsche Oostindische Compagnie (Companhia Unida Holandesa das Índias Orientais). Para não complicar, vamos fazer como os holandeses do século XVII e chamá‑la pela sigla simplificada que eles criaram: VOC. “Convidar a população a tornar-se sócia” significava dividir a empresa em milhares de partes e vender as parcelas no mercado. Em que mercado? Construíram um em Amesterdão para comercializar as “parcelas” da VOC e deram‑lhe o nome de bourse (bolsa). “Bolsa” era o nome que os holandeses usavam para designar os lugares onde os comerciantes se reuniam para negociar. Porque lhe chamavam “bolsa”? Ninguém sabe. A lenda mais persistente é a de que mercadores do século XIV reuniam‑se em Bruges (na Bélgica), um centro comercial importante da época, e hospedavam‑se num certo Hôtel des Bourses (Hotel das Bolsas). E o nome foi‑se espalhando. Também existe uma hipótese mais simples. As pessoas transportavam as moedas em bolsas. Era lógico que um lugar onde circula muito dinheiro, como uma reunião de comerciantes, recebesse esse nome. A VOC foi para a bolsa, e exatamente 1143 pessoas compraram partes da empresa, em tamanhos variados. Oitenta indivíduos colocaram mais de 175 mil euros em dinheiro de hoje (10 mil guildas no da época), mas boa parte era formada por pequenos investidores: 445 puseram mil guildas (17 500 euros) ou menos. Trabalho financeiro coletivo é isto. Cada parcela da VOC chamava‑se “parte de uma ação”. “Ação” no sentido de empreitada, já que o dinheiro era mesmo para financiar empreitadas para a Índia, em busca de pimenta, cravo e canela, mas a palavra ficou. Nas línguas latinas, pelo menos; os países anglófonos preferiram chamar‑lhe só “partes” (shares). Hoje, as multinacionais portuguesas vendem shares em Nova Iorque e ações no Brasil. Somando todos os títulos que tinham ido à venda, a VOC arrecadou 6,5 milhões de guildas, ou seja, 110 milhões de euros. Esse passou a ser o “valor de mercado” da empresa, a soma do preço de todas as ações que ela tem no mercado. Parece pouco para quem está acostumado aos números do mercado de hoje. As ações de muitas empresas valem mais de mil milhões de euros. É o caso da Portucel, uma fabricante de papel e pasta de papel. As ações da Jerónimo Martins, a dona dos supermercados Pingo Doce, somam mais de seis mil milhões de euros. As da Galp Energia ultrapassam os oito mil milhões de euros. No entanto, referimo‑nos a um mundo muito menor. O PIB da Holanda em 1602 era de cerca de três mil milhões de euros em dinheiro de hoje, o que equivale ao da região da Lezíria do Tejo. E o PIB do planeta na época, estima‑se, andava na faixa dos 450 mil milhões, isto é, não chegava a três vezes o PIB português atual. Hoje, o PIB mundial é quase mil vezes maior. Atualizando o valor da VOC por esse parâmetro, pode dizer‑se que hoje seria uma das maiores empresas do mundo, com valor de mercado de mais de 100 mil milhões de euros. Naquele tempo, o capital de 6,5 milhões de guildas da VOC fazia dela, tranquilamente, a maior empresa do planeta: a sua rival inglesa, aquela que foi fundada em 1600, valia quase dez vezes menos. Das Índias à Petrobras As ações da VOC faziam o que as ações fazem: davam direito a uma parcela dos lucros da companhia. Se alguém tivesse colocado mil guildas, podia embolsar 0,000.15% de todo o dinheiro que a VOC fizesse com as suas viagens nos anos seguintes – esse seria o seu dividendo, o dinheiro que lhe caberia. Estava agendado um pagamento de dividendos em 1603, outro em 1605 e mais dois em 1607 e 1608. Pormenor: não era possível saber quais seriam os lucros, ou se haveria algum lucro, ou se algum navio voltaria das viagens. Pior: alguém colocou as suas guildas no negócio quando era solteiro e agora, em 1603, já está casado, com um par de gémeos para criar, e nada de os barcos voltarem. O que fazia essa pessoa? Ia à Bolsa de Amesterdão e vendia as suas ações da companhia. Não eram pessoais e intransmissíveis, mas ações ao portador. Se a necessidade batesse à porta, era possível passá‑las a alguém e vender o direito à sua parte dos lucros a outra pessoa que estivesse disposta a enfrentar o risco. Os anos foram passando e não houve dividendo nenhum. A VOC tinha gasto mais de metade do capital com a construção de 22 navios, e outras centenas de milhares de guildas para adquirir os metais preciosos de que precisava para trocar por especiarias no outro lado do mundo. A competição com os portugueses e os espanhóis também não ajudava. Era competição no melhor sentido da palavra: a Holanda estava em guerra com a Espanha desde 1568 e continuaria assim até 1648. Era por isso que os navios mercantes tinham canhões. Qualquer encontro no mar entre a Holanda e a Espanha acabaria num embate quase tão sanguinário como a final do Campeo­nato Mundial de Futebol de 2010, disputada a pontapés entre os dois países. Um caso típico: barcos holandeses capturaram galeões espanhóis em 1605, no canal da Mancha. O almirante holandês, em vez de fazer prisioneiros, afogou todos os tripulantes, amarrados uns aos outros. Ninguém perdia tempo. Por essas e outras razões, a VOC estava a fazer mais dinheiro a saquear navios espanhóis do que com o comércio propriamente dito. Não conseguia estabelecer fortes e entrepostos comerciais no Oriente, porque os inimigos da península Ibérica, que já estavam bem estruturados na região, não deixavam. Sem essa infraestrutura, não era possível garantir um comércio constante: umas vezes os navios voltavam bem fornecidos, outras vezes não voltava navio nenhum. altEspeculação na Bolsa Isto gerou um clima de especulação na Bolsa de Amesterdão. Quando havia boatos de que navios da VOC se tinham afundado, uma série de pessoas que tinham colocado as ­suas suadas mil guildas nas ações queriam era desfazer‑se delas, em vez de esperar por um lucro que nunca viria. Nessa altura, a solução era vender ao primeiro otário mal informado que aparecesse: “Sabe como é, a minha mulher teve gémeos... Eu não queria, mas vou ter de vender esta maravilha de ações. Vá lá, só 900 guildas...” Em suma, com muita gente a querer vender, o preço da ação caía. Quando o boato era de que os navios estavam a voltar carregados de especiarias, a conversa era outra, claro. Otário, então, era quem não comprasse, e mal informado quem vendesse: “Estas ações são uma treta, não é? Mas eu quero‑te ajudar. Compro‑te as tuas por 1010 guildas. Sabes como é, só me sinto feliz quando ajudo as pessoas...” E o preço da ação subia. Em 1607, um terço das ações da VOC tinha trocado de mãos na bolsa. Bastou surgirem as ações para que aparecesse o mercado de ações, que sempre foi muito mais guiado pela psicologia do que pela economia: um sinal de que a empresa se ia dar bem, e os preços subiam; uma desconfiança, mesmo leve, e o valor das ações caía. Não mudou nada de lá para cá: no início de 2011, uma onda de turbulência nos países árabes fez o preço do petróleo subir 25% num mês. No mesmo período, as ações da OGX, a empresa petrolífera do brasileiro Eike Batista, subiram de 16 para 20 reais – 25%. Pormenor: a OGX nunca tinha produzido uma gota de petróleo. Ninguém sabia se, quando ela estivesse realmente a produzir, o petróleo continuaria mais caro, cairia de preço ou seria já um combustível obsoleto, mas foi uma beleza: só a esperança de que os futuros lucros da empresa seriam maiores por causa de um eventual barril de petróleo mais caro foi o suficiente para fazer chover compradores. O mercado continua tão descontrolado como sempre foi. Ainda bem: se não há a esperança de que as ações deem lucro e subam de preço, não existe mercado de ações. Sem ele, as grandes empresas ficariam amarradas, seria muito mais difícil reunir dinheiro para operações caras. Foi ele que permitiu à VOC lançar os seus barcos de madeira no alto‑mar, e que permitiu à Petrobras lançar as suas brocas mar abaixo. A exploração do pré‑sal seria inviável se dependesse do dinheiro que a empresa tinha em caixa e de empréstimos bancários. A companhia teria de esperar sentada pelos biliões de que precisava para investir. Por isso, agiu como os holandeses de 1602: foi à procura de microssócios. Mais microssócios, na verdade. A Petrobras já tinha ações no mercado desde 1953, quando foi fundada por Getúlio Vargas. Até 2010, a empresa estava dividida em nove mil milhões de ações (tendo o governo como acionista principal, por isso sempre foi estatal, mesmo tendo sócios privados). Quem tinha uma ação da Petrobras era dono de 0,11 milmilionésimos da companhia e tinha direito a uma parcela equivalente dos lucros da empresa. Como as ações geralmente são comercializadas em lotes de 100, hoje em dia, o normal é que os acionistas menores tenham pelo menos uma centena de títulos de qualquer empresa. Vamos ser realistas: quem tinha um lote de cem ações da Petrobras era dono de 11 milmilionésimos da companhia. Se a Petrobras desse 20 mil milhões de reais de lucro num ano, cada proprietário de cem ações podia receber até 220 reais em dividendos (até 220 reais porque a empresa não é obrigada a converter todo o seu lucro para os acionistas; pode ficar com a maior parte do que ganhou no ano e reinvestir na companhia, e é o que a maioria faz). Foi então que a Petrobras se viu com o pré‑sal pela frente. Precisava de gastar qualquer coisa como 400 mil milhões de reais em quatro anos para explorar as reservas. Era demasiado dinheiro para pedir emprestado aos bancos. A saída foi a solução que os holandeses tinham criado: a bolsa. A Petrobras lançou 3,75 mil milhões de ações novas no mercado em 2010. Essas ações extras dividiram a empresa em mais partes do que antes. Se antigamente eram pouco mais de nove mil milhões, agora eram 13 mil milhões. Quem já tinha ações da empresa viu a sua participação diminuir. Um lote de 100 dava direito a 11 milmilionésimos do lucro da companhia, certo? Agora dava só oito milmilionésimos: se a empresa lucrasse novamente 20 mil milhões de reais, o pequeno acionista ficaria com, no máximo, 160 reais. Na prática, foi como se uma nova empresa estivesse a abrir as portas. Uma companhia com 13 mil milhões de ações, sendo que nove mil milhões já tinham dono (os acionistas antigos). O resto estava à venda no mercado para quem quisesse entrar como sócio. Que vantagem tem a Maria em comprar ações de uma empresa que acabou de se diluir? A seguinte: a Petrobras espera aumentar os lucros no futuro. Em 2010, produzia dois milhões de barris por dia. Com o pré‑sal, a expectativa é de que, em 2020, sejam quatro milhões. Se o preço do barril ficar mais ou menos estável até lá, isso significa duplicar o lucro, claro. Então, os oito milmilionésimos da “nova Petrobras” dariam automaticamente direito a mais dividendos do que os da velha: 320 reais contra os 220 de agora, usando os números do nosso exemplo. Isto em 2020, claro, e na hipótese de tudo correr bem. O maior lançamento do mundo Não faltaram pessoas que acreditassem nessa hipótese. Se a venda de ações da VOC foi a primeira da história, a da Petrobras, em 2010, foi a maior do mundo em todos os tempos. A venda dos 3,75 mil milhões de ações rendeu à empresa, de uma só vez, 120 mil milhões de reais (60 mil milhões de euros); o segundo maior lançamento de ações foi o do Banco Agrícola da China, um gigante com 24 mil agências e 441 mil funcionários (contra os 390 mil da Petrobras), também em 2010: 18 mil milhões de euros. Claro que, como acontece sempre num lançamento de ações, todas as pessoas que entram estão dispostas a correr o risco de ver o seu dinheiro evaporar‑se. O banco chinês pode falir, o petróleo pode baixar a ponto de não fazer sentido gastar meio bilião de reais para perfurar o pré‑sal... E os barcos da VOC podiam afundar‑se. Vale a pena pessoas comuns, como eu e o leitor, enfrentar esse tipo de risco? Para quem tinha ações da VOC, valeu. A Companhia Holandesa das Índias Orientais conseguiu ultrapassar os portugueses e os espanhóis. passando pela Índia sem parar e fixando os seus postos comerciais mais a leste, na Indonésia. A primeira conquista da VOC na região foi o arquipélago de Banda, um paraíso com ilhotas cheias de especiarias despontando num mar azul‑turquesa (pesquise “banda islands” no Google Images para imaginar o que os holandeses devem ter sentido ao ver aquilo). Não que a eventual comoção com a beleza do lugar tenha durado muito. Os moradores de Banda obviamente não acharam a melhor ideia do mundo tornarem‑se uma colónia de um bando de ruivos vindos de Marte. Reagiram à invasão, mas o contra‑ataque da VOC foi fulminante. Jan Pieterszoon Coen, capitão de navio e diretor da companhia, promoveu uma carnificina nas ilhas para mostrar quem mandava. Fez o nome Oranda ficar conhecido no Japão ao contratar tropas de mercenários nipónicos para torturar e matar bandaneses. Decapitou líderes da resistência e exibiu as cabeças em postes. Quando a VOC chegou a Banda para fazer negócios, o arquipélago tinha 15 mil habitantes. Passados 15 anos, eram 600. Para ser um grande executivo no século XVII, era preciso ser um grande executor. De pessoas. Para um psicopata como Jan Pieterszoon Coen, o mundo empresarial era um prato cheio – e continua a ser, por sinal: hoje, a proporção de psicopatas entre os executivos de empresas é quatro vezes maior do que entre a população em geral (4% contra 1%). Não ter dó dos outros ajuda a massacrar a concorrência. Faz parte. Mau para os bandaneses, bom para os acionistas da VOC. A companhia mostrou ser um grande investimento. Depois de garantir a Indonésia, os holandeses conquistaram algumas posições dos portugueses na Índia e foram ganhando terreno até que a VOC se tornou o maior fornecedor de especiarias para a Europa. Em 1622, as ações tinham‑se valorizado 300%, numa época sem inflação. Mais tarde, em 1670, já tinha 50 mil funcionários (muitos, até mesmo para os padrões de hoje: era a quantidade de empregados da Apple, a segunda maior companhia em valor de mercado do mundo, em 2011). A VOC tinha isso e mais um exército particular de 30 mil soldados e 200 navios, a maioria deles armados. E mais importante: estava a pagar dividendos até 40% ao ano. É lugar‑comum dizer‑se que as ações valem sempre a pena a longo prazo (e há muito exagero nisso), mas neste caso foi precisamente isso que aconteceu. Ao longo do século XVII, a VOC mandaria 1770 navios para o Oriente, contra 371 de Portugal. Cem anos depois, o placard seria ainda mais elástico: Holanda, 2950 – Portugal, 196. O negócio das ações era mesmo bom. Até vir a primeira bolha. Não tardaria muito... A.V. SUPER 173 - Setembro 2012

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