Todos os anos, centenas de mochileiros se aglomeram nas marinas de Portugal, Espanha, França, Ilhas Canárias ou Cabo Verde. Em francês, são chamados de bateaustopeurs. Buscam uma carona em um veleiro até o outro lado do Atlântico. Nascem parcerias insólitas: aposentados e jovens mal saídos da adolescência, endinheirados e gente em busca de um recomeço. A seguir, trechos de um “diário de bordo” de uma dessas aventuras.
Novembro 2012 - Longitude 15° oeste
Termina a época dos ciclones no Atlântico, começa a das travessias. O mar das Ilhas Canárias fervilha de veleiros, iates e navios. Perto da marina de Las Palmas, jovens de mochilas e instrumentos musicais às costas. Caminham quilômetros pelos pontões, nadam até os barcos ancorados. Bom dia. Por acaso vão atravessar o oceano? Precisam de tripulantes?
“A carona de barco consiste em perguntar a quem tem veleiro se aceita levá-lo em troca de trabalho durante o trajeto”, ensina Berta, catalã de 22 anos. Cabelo curto, cansada das grandes cidades, tinha a ideia de partir, fazer uma grande viagem. “De carona se é superlivre”, define. Jovens como Berta rumam às marinas do Algarve, de Gibraltar ou da Bretanha. Nas Canárias, os caminhos se cruzam. “Las Palmas é a Meca da carona de barcos”, define Manon, austríaca de cabelos loiros, ao lado de seu acompanhante, Adrien, prestes a embarcar em uma viagem pelo mar. Quer chegar a Cuba.“Sabíamos que tinha se tornado super popular nos últimos anos, porque toda a gente fala disso. Mas quando chegamos ficamos chocados: havia hordas de mochileiros. Dissemos 'uau, nunca conseguiremos encontrar um barco.'”
Para Alexis e Flo, irmãos de 28 e 24 anos que fugiram ao mau tempo parisiense para descobrir a América do Sul, a busca já dura um mês. “Temos todos algo em comum, mas um sem fim de trajetórias diferentes. Há gente de todas as nacionalidades, velhos e novos, mais ou menos hippies, pessoas ricas, da classe média, ou cujos pais nunca tiveram dinheiro...”
O 'bateaustop', como foi batizado em francês, faz-se em qualquer parte do mundo onde haja veleiros e não é um fenômeno de hoje. “Já o meu pai e o meu tio navegavam assim, mas era diferente: era algo mais entre marinheiros, havia muito menos gente. Acho ótimo que haja tanta gente, porque abre o meio a outras pessoas”, conta Quentin. Cabelos compridos soltos, pequeno Mogli dos mares, cresceu a bordo de um veleiro, e procura agora um barco para encontrar o irmão em Guadalupe. “Mesmo que tenha sempre havido os ricos, com os barcos super belos, antes havia sobretudo aventureiros. As Canárias e o Caribe estavam repletos de viajantes. Hoje a maioria são velejadores de férias ou reformados, que ficam pelos bares das marinas. Os viajantes de carona trazem esse espírito de descoberta, de aventura”.
Há capitães que aproveitam para exigir uma contribuição para a caixa de bordo que vai muito além das despesas da viagem: dez a quarenta euros por dia. A partir de janeiro, haverá cada vez menos barcos a atravessar. Há quem desista, há quem faça novos planos.
“Mesmo havendo muita gente, a procura não se torna competitiva, há muita entre-ajuda. Todos partilham os seus planos: 'vai ali, tem este e aquele barco'”, contam Alexis e Florian. Dezenas de jovens viajantes ocuparam um enorme hotel abandonado, dando-lhe vida novamante e uma gestão coletiva, para que possa acolher quem precisa. Partilham cigarros e canções, sonhos e saberes. Partilham o prazer de partir sem pressa. “E”, admite Alexis, num sorriso, “todo o mundo acaba por ter sorte”.
Dezembro 2012 - Longitude 30° oeste
Alexis imaginara estar na América Latina quando chegasse seu aniversário. A previsão falhou uns meses. Os dois irmãos e o casal de reformados que os embarcou estão sentados na proa, especialmente decorada. Há bolo e ementa especial. Mindelo (com muitos veleiros e caroneiros) e as ilhas de Cabo Verde desaparecem onde nasce o sol. O imenso azul toma conta da paisagem. Manon lembra que em um barco há o aspecto psicológico de passar muito tempo com alguém, num espaço superconfinado, e de se pôr à sua disposição. Ela e Adrien, em companhia de dois outros bateaustopeurs, seguem no iate de um rico empresário francês, que cedo se revela “um capitão um pouco ditatorial”. “Tínhamos medo das suas intensas flutuações emocionais.”
Como a maior parte dos que atravessam de carona, nenhum deles tinha navegado antes. “Não conhecia absolutamente nada. Nem sabia se enjoava ou não. É uma descoberta de A a Z, é super excitante.”, conta Manon. Descobrem Tabarly e Moitessier e deixam-se inspirar pelos grandes velejadores. A experiência desperta paixões, por vezes para a vida.
Para Manon e Adrien, mais do que um sonho antigo, viajar de veleiro era uma escolha óbvia. Não tinham dinheiro para embarcar em um cargueiro e evitam o avião por motivos políticos. “Quando você sabe que há um verdadeiro problema de emissão de gás carbônico e continua a viajar de avião só para o próprio prazer, é algo tão egoísta, e tão desprezante em relação a todos os que não podem fazer e que sofrem as consequências das alterações climáticas", diz. "O avião é um dos últimos marcadores das injustiças sociais no planeta: nós temos a sorte de apanhar aviões super baratos, um privilégio dos super ricos. Os aviões vão dos lugares dos ricos (Paris, Londres e Frankfurt) aos lugares dos pobres, não ao contrario.”
Para Quentin, há um outro fator contra o uso do avião. “De avião há meses você sabe que vai chegar no dia tal, à hora tal, ao lugar tal”, diz. “Assim tudo é imprevisível.” “Quando vê uma ilha se aproximar, a terra à vista, é uma coisa de louco”, explica Alexis. “Você conta os dias e as horas.” “Quando se recusa apanhar o avião e vai pela terra ou pelo mar, isso faz a pessoa descobrir e compreender tantas outras coisas, sobre a história, a geografia... você vê outra coisa”, diz Manon. “Para mim é impressionante fazer um trajeto que é tão marcante historicamente: a rota da colonização, das conquistas, do escravagismo.” No mesmo oceano, a mesma rota: outrora feita para expandir o império, para conquistar, hoje para escapar ao império do consumo, para descobrir outras paisagens e formas de viver.
Março 2013 - Longitude 60° oeste
Le Marin, na Martinica, é a maior marina do Caribe. Os bares, repletos de gente, têm as paredes repletas de anúncios. Dominica, Colômbia, oceano Pacifico, Europa... Há barcos apontados para todas as direções. E jovens ansiosos por um lugar a bordo. Ponto de encontro daqueles que conseguiram chegar a este lado, palco de reencontros efusivos entre bateaustopeurs que se conheceram nas Canárias, em Cabo Verde ou em ilhas caribenhas. Partilham-se histórias das travessias.
Há Jean François, guitarrista e geólogo suíço de 70 anos, um veterano das caronas de barco. Os dois jovens do Quebec que, sem nunca terem navegado antes, descobrem que entendem mais que o capitão. Este acaba por lhes confiar o barco e dinheiro para o levarem até ao Canadá – as grandes navegações não eram para ele. Há Patt, australiano descendente dos famosos revoltosos do Bounty, que transportou 15 jovens a bordo de seu catamarã. Há Julien, músico e palhaço cansado de uma vida de digressões pela Europa, determinado a percorrer sozinho a Amazônia de canoa.
Berta havia se unido a Alexis e Flo. Há dois meses viajam de carona pelos mares do Caribe. Montaram uma pequena cabana à saída da marina. Fazem artesanato com sementes locais e vendem aos turistas. Vivem da comida jogada fora por supermercados e navios turísticos. Procuram um veleiro para a Colômbia ou Venezuela. “Não é porque não se tem dinheiro que não se pode fazer uma viagem dessas. Mas é preciso ousar. Não ter vergonha de vasculhar no lixo do supermercado, fazer refeições de legumes recuperados, dormir nas praias”, explica Berta.
“Os habitantes habituaram-se a que os brancos sejam turistas, americanos ou franceses, e veem você logo como uma carteira. Eu procuro mais o contato com as pessoas, ou simplesmente com o espaço e as possibilidades que ele dá. A agricultura, a pesca, tudo isso me interessa. Quero descobrir como se faz aqui. Enquanto que há uma data de turistas que vêm simplesmente para se desconectar do seu trabalho. O fato de não ter muito dinheiro, de eles te verem assim, de dormir nas praias, aproxima você das pessoas daqui. Seria diferente se eu chegasse com o meu 4x4 e as minhas roupas de 80 euros a peça.”
“As pessoas que vieram de avião dão a impressão de que não chegaram sequer a descer dele. Nós navegamos, apanhamos as ondas, num ritmo mais livre, mais perto da cultura do Caribe”, diz Adrien. “Chegar ao Caribe de avião”, acrescenta o jovem arquiteto, “é como se entrasse pela chaminé. A porta aqui é o mar!”.
Manon e Adrien conheceram Quentin e juntaram-se os três numa aventura inesperada: compraram em conjunto um velho veleiro. Fazem incursões nos barcos que se afundam abandonados nas imediações da marina para recuperar todo o tipo de objetos. Nos supermercados enchem as provisões de bordo. Se estão sem dinheiro, transbordam de excitação.
É aniversário de Manon. E a primeira navegação ao longo da costa da Martinica. Alexis, Flo e Berta se unem ao trio. À saída do pontão, veem-se refletidos no grandioso iate de Bill Gates. Mais tarde, sob as estrelas, contam histórias e cantam. O barco avança no mar. Outrora povoado de piratas, dissidentes dos impérios europeus, hoje povoado destes nômades de mochila às costas, dissidentes da sociedade do consumo-trabalho, que pilham as prateleiras dos supermercados, conquistam o tempo e têm por tesouro a aventura.
“É um luxo. Dar-nos todo esse tempo, nos metermos em complicações, só para fazer essa travessia de barco, quando podíamos simplesmente pegar um avião. Significa, porém, tantas outras coisas, viajar dessa forma...”, filosofa Manon. “Mudei verdadeiramente a minha noção do tempo”, confessa Alexis. “Para conseguir uma carona demora um tempão. Há semanas estamos à procura de um barco para a América do Sul. Se eu tivesse esperado cinco minutos pelo meu metrô estaria muito nervoso. Aprendemos a não ter pressa, a desfrutar da beleza dos lugares onde estamos.”
“Quando alguém nos pergunta se estamos de férias, dizemos não”, afirma Alexis. “Estamos de viagem.” Por quê? “As férias são só uma pausa no tempo de trabalho”, explica Manon. “Para nós”, completa Quentin do fundo do barco, “o tempo de trabalho é uma pausa nas nossas vidas”.