Fonte: sesimbra.blogspot.com
Livro da Fábrica das Naus
Os navios da era dos descobrimentos tinham proas bojudas, algo que contraria a noção moderna de que os bons veleiros devem possuir quilhas estreitas e alongadas. Durante muito tempo se pensou que as proas dos barcos deveriam ser grossas e largas para poder enfrentar o mar, e este é um dos temas desenvolvidos num dos documentos mais importantes da nossa bibliografia naval, o "Livro da Fábrica das Naus" de Fernando Oliveira, escrito por volta de 1580. Trata-se do primeiro tratado português de arquitectura naval, e um dos mais antigos conservados quase integralmente, incluindo desenhos das diversas partes de uma nau.
É evidente no texto uma argumentação de natureza escolástica, com referências ao Mestre (Magister dixit) Aristóteles, e frequente recurso a analogias com a natureza. Mesmo no texto é possível detectar inconsistências na argumentação - por exemplo, o citar que a maioria dos peixes "têm as partes dianteiras mais grossas que as de trás", para mais adiante reconhecer que a natureza também lhes deu "focinhos agudos para começarem abrir". É uma argumentação engenhosa, mas errónea, cuja falsidade poderia ser facilmente comprovada através da realização de algumas experiências, mas Fernando Oliveira, com a sua educação universitária e religiosa, prefere apoiar-se na argumentação teórica e na citação das "autoridades" do passado. É, no entanto, obrigado a reconhecer que nem todos estão de acordo, e que entre os mestres carpinteiros os "entendimentos são desvairados" [diversos].
(...)
E mais, as proas delgadas çafurdam mais que as largas. Também para romper o mar é melhor a proa larga, e pesada [-] aplicar o que diz Aristóteles, que todos os animais que têm as partes dianteiras mais pesadas, por isso nascem com elas por diante, porque o peso delas rompe e abre caminho. Mas porque a grossa parece contra razão, abrir melhor o caminho, que a delgada, quero alegar alguns exemplos, nos quais a natureza, e a experiência mostram ser isto conforme a razão, e não contra ela. O primeiro se vê no nascimento dos homens, e dos outros animais acima ditos, que nascem com as partes mais grossas por diante: e assim dos ovos das galinhas, e outras aves, que também assim nascem. E a razão é, que com aquelas partes mais grossas abrem o caminho, pelo qual as outras mais delgadas passam facilmente. [-] quero ainda declarar mais, em uma coisa que os homens do mar trazem outras mãos. Acostumam levar mastros à toa pelo mar, e levam-nos com as cabeças grossas por diante, porque assim vão mais levemente, que com as pontas delgadas. O porque, é, que a ponta delgada não abre mais lugar que por onde esta cabe: e logo trás ela vem outra parte do mastro mais grossa, que requer lugar mais largo, e é-lhe necessário abri-lo, e para isso por força; e logo atrás aquela vem outra mais grossa, que faz outro tanto, e logo outra, e assim outras muitas até ao cabo: as quais sempre acham resistência, e dão trabalho a que leva o mastro: o que não fazem, se levam a cabeça grossa por diante: porque aquela abre logo lugar, e caminho, que basta para ela, e para todas as outras partes daquele mastro, que vem atrás, não sendo mais grossas do que ela. O mesmo vemos usar nas verrumas, e trados dos carpinteiros, que nas cabeças com que abrem os buracos são mais grossas para o mesmo efeito de abrir o caminho fraco. Os peixes, que são exemplo dos navios, os mais deles têm as partes dianteiras mais grossas que as de trás: em especial, ruivos, enxarrocos e pargos, que em comparação dos corpos, têm as cabeças muito grandes e a razão disto, diz Aristóteles, que é, assim nos peixes como nas aves, e noutros animais, aos quais deu a natureza as partes dianteiras mais grossas, para abrirem o ar e a água diante dos restos dos corpos, por se poder passar facilmente nadando, voando, e andando, por o que a natureza ordenou nas alimárias naturalmente, com razão o imita a nossa arte na fábrica das naus, fazendo-lhe as proas grossas, para abrirem as águas, e desimpedirem o caminho a todo o resto da nau para que possa passar, e navegar sem impedimento, portanto não pareça este costume contra razão, pois a natureza o usa, e do seu uso é tomado. Mas porém uma coisa hão-de notar, que Aristóteles aponta, e diz, que sem embargo, que a natureza deu aos animais as partes dianteiras mais grossas, e cheias, também lhes deu diante cabeças, e bicos, e aos peixes focinhos agudos para começarem abrir: e assim o imita o artifício, porque as verrumas, e os escopros primeiro têm uma ponta aguda, ou gume para começar a abrir: porque doutra feição, seria dificultoso abrir corpos maciços, e duros, com cabeças de todo rombas. E assim também será dificultoso, as proas dos navios sendo rombas romper o mar, em especial, quando andar bravo e grosso, que é o tempo em que mais cumpre rompê-lo, e escapar dele: mas antes então, se a proa for muito romba, amontoará diante de si as ondas, e afogar-se-á entre elas, e não poderá surdir. Portanto, sejam as proas cheias, mas não façam testa, nem releixo algum, em que o mar possa investir: e o cheio da proa seja no alto ao lume da água, porque assim além de não estorvar o caminho, também é bom para não çafurdar, nem meter o focinho no mar, e por baixo tenha o talhamar apanhado, de maneira que corte, e espida a reversa para o governalho. Para vir a proa na sua forma devida, conforme o que fica dito, será o seu liame ordenado desta maneira. Logo em saindo da almogama conformar seja como o do fundo, e irá recolhendo pouco e pouco, sem fazer releixo: porém será de tal modo , que aos dois e três pares comece a fazer cantos agudos para baixo, e cerrando os cantos sobre o enchimento lançará os pés das buçardas maciços até à roda. E de cima do enchimento começarão a subir os braços das buçardas recolhidos, e não muito arcados: porque naquela parte há-de ser a proa apanhada, até ao terço da altura da roda: e daí irão espalhando em arcos quase circulares, de feição, que não enchendo a proa, e fazendo bochechas. Este liame de proa se chama buçardas; e parece que foi tirado este nome de outro latino, que é bucca [?], o qual quer dizer bochecha: e se assim é, podemos conjecturar, que já em tempo dos latinos, quando eles puseram este nome a este liame, aconselharam também fazer as proas cheias, e bochechudas, e que não é isto invenção nova, mas que a razão que agora ensina ser isto conveniente o ensinou aos antigos antes de nós; porque a razão se perpetua, e sempre uma, quando ela é acertada, como esta é; senão que às vezes não é bem entendida, nem usada. Quero dizer, que por que a razão diga ao entendimento, que as proas dos navios devem ser grossas e cheias, nem por isso sabem todos usar desta razão limitadamente, como ela quer: porque uns navios querem mais, outros menos, e os entendimentos são desvairados, e não aplicam todos a doutrina desta maneira. Portanto olhem os nossos carpinteiros o que fazem, e não façam em lugar de bochechas nalgas: porque além de ser feio, é prejudicial ao navegar. |
Notas:
1. pode aceder-se ao conteúdo integral do "Livro da fábrica das naus" na página da Biblioteca Nacional.
2. Esta ideia da necessidade de uma proa larga prevaleceu até recentemente num tipo de barco que ainda podemos ver a navegar: o Hiate de Setúbal, que tem a prôa mais bojuda do que a pôpa.
3. Significado de algumas palavras:
4. O "Livro da Fábrica das Naus" tem data de 1580 e é uma tradução duma obra anterior do padre Fernando Oliveira, a "Ars Nautica", escrita em latim, mas nunca publicada. Fernando Oliveira nasceu por volta de 1507 em Aveiro e estudou na Universidade de Évora, onde se tornou padre dominicano. Em 1536 estava em Lisboa e publicou o seu primeiro livro, uma gramática de Português. Por volta de 1540 partiu para Génova, desconhecendo-se se lá chegou, pois foi feito prisioneiro por uma galera francesa que atacou um navio em que seguia, mas conseguiu ser admitido como piloto, tendo servido nessa profissão alguns anos, em França. Em 1546 o seu barco foi tomado pelos ingleses, sendo feito de novo prisioneiro e levado para Inglaterra, onde desempenhou funções diplomáticas para a corte. Alguns autores sugerem que em várias ocasiões terá servido como espião,mas não existem provas disso.
Em 1547 estava de novo em Portugal, onde setornou notado pelo modo exótico de vestir (vestido curto e comum chapéu de feltro de seda). Foi preso pela Inquisição, acusado de considerar o rei Henrique VIII como cristão, apesar de protestante. Libertado em 1551, participou na malograda expedição para conquista de Argel, onde foi feito prisioneiro. Libertado em 1554, regressou a Portugal, onde publicou "A Arte da Guerra no Mar". Voltou a saír do país, tendo falecido depois de 1585, provavelmente em França, deixando uma série de livros não publicados, entre os quais a "Ars Nautica" e o "Livro da Fabrica das Naus".
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