Alaska, a última
fronteira. Tais são os dizeres abaixo dos números nas placas dos automóveis que
circulam pelo maior de todos os estados dos Estados Unidos da América. Nem
mesmo nos meus mais remotos sonhos marítimos sequer imaginei que um dia
navegaria por essas frias, misteriosas, perigosas e interessantíssimas águas.
Cheguei à encantadora cidadezinha
de Homer, na Península do Kenai por volta das 3h da madrugada do dia 18 de
Junho após passar o dia todo em trânsito vindo de New Port, Rhode Island, do
outro lado do imenso país. O sol seguia alto no céu dando sequer sinal algum de
que baixaria em algum momento... e tal foi minha primeira impressão dos 59⁰ de
Latitude Norte onde eu agora caminhava tranquilamente metido em minhas botas e
trazendo o velho saco de marinheiro ao ombro. Não fazia frio ou calor, o dia,
digo, a noite estava linda e o porto pesqueiro junto ao final do chamado Homer
Spit impressionou-me logo de saída com a quantidade de embarcações docadas ali
e as outras tantas que entravam e saiam pela única e estreita entrada do porto
que, aquelas alturas, eu nem sabia pra que lado ficava... mas o tempo e a boníssima
gente do lugar não tardou a apresentar-me o pedaço, assim como parte das aguas
locais.
Nordwind foi construída
na Alemanha no ano de 1939, na cidade de Bremen. O construtor, H. Gruber, e sua
equipe construíram o barco para a Marinha Alemã da época e, como todos sabem,
aquela foi uma época bastante séria da história daquele país portanto, o barco
era solido! Mais de 80 pés de madeira sustentadas por costelas de ferro
fundido, belamente ornamentada com carpintaria de ponta em seu interior
luxuoso, armada em Yawl, como muitos W. Fifes, entre outros tantos belos clássicos
costumavam ser. Barco lindo, cheio de histórias não contadas e detalhes
interessantes em bronze e madeira, assim como porcelanas nos banheiros,
daquelas azul e branco, que davam gosto de contemplar e pensar em quem já havia
escovado os dentes ali...
Teríamos menos de um mês
para reanimar o grande barco que ali literalmente hibernava(tipo um urso!) e
levar o dono e sua simpática esposa para um cruzeiro de exploração pela península
do Kenai por 10 dias, após o qual a embarcação seguiria para Vancouver, no
Canadá, onde a mesma enfrentaria outro longo e frio inverno sem ninguém a
bordo. Assim sendo, nos enfurnamos a trabalhar e não
paramos nem mesmo no feriado da Independência norte-americana – 4 de Julho e,
ainda assim, a turma nos trouxe cachorros-quentes e “biscoitinhos da
Liberdade”, muito gentil da parte deles por sinal! Fiz bons amigos ao longo dos
muitos dias de trabalho pesado que realizei e se tem uma coisa que seja verdade
sobre essa gente é o fato de eles respeitarem e tratarem com consideração
aqueles que pesado trabalham. Gente como
o bom Dave do “Ashore watertaxi”, ao longo das semanas, me presentearam com
carne de alçe, ostras frescas da fazenda-ali-do-outro-lado-da-baía, mexilhões,
bacalhau negro defumado que eu-nunca-havia-comido-igual! Salmão e salmão e mais
salmão... Nunca jamais havia pensado que comeria ou se podia comer tanto salmão
e tão fresco... Mamma mia!!! E também
foi a vez do Senhor Mogar, o genial eletricista, levar-me pra jantar num
restaurante de verdade por aqui, ir num bar, ouvir música local e falar com as
pessoas que jamais-viram-um-brasileiro na vida. Tudo muito divertido e bastante
tocante a forma como fui muitíssimo bem recebido aqui em Homer, no Alaska!
Aqui a coisa funciona
nos termos da pesca comercial. Existem barcos e mais barcos entre 30 e 50 pés totalmente
preparados para pescar toneladas de salmão de primeira qualidade pelas seis
semanas por ano onde tal prática é permitida.
A maré é imensa, passando fácil dos 6 metros de amplitude, são quase 4.4
pés de agua subindo ou descendo a cada hora e daí o amigo já consegue imaginar
as correntes do lugar. São perigosas as águas que esses homens e mulheres se
aventuram para buscar seu peixe e também aqui se pratica aquela perigosíssima
“pesca mortal” do caranguejo que tem até programa de tv a respeito, mas isso é
no inverno e Deus me ajude de passar o primeiro inverno da minha vida tropical
aqui!
Era o dia da partida,
o proprietário estava para aparecer a bordo a qualquer momento aquela manhã
ensolarada e todos estávamos em nossos uniformes. Sabe como é, a vida de
marinheiro tem dessas também... Veio o homem, carregamos sua bagagem a bordo, o
mesmo desembarcou depois de meia hora e, trazendo sua senhora pelo braço, foi
visitar Homer e seus pequenos encantos. Encantadora a pequenina Homer e
fascinante é a palavra que me vem para descrever o Spit, esse prolongamento de
terra adentrando o mar quase que em linha reta por cerca de 6 milhas, criando
assim um porto ideal e único para aqueles que aqui vivem das iguarias que
somente o Oceano sabe produzir e prover.
O zarpe aconteceu por
volta das sete da “noite” do dia 11 de Julho, o céu estava claro como somente
um dia de verão saber ser e as máquinas que tão bem preparara para nossa
navegação realizaram seu trabalho sem maiores incidentes. Ancoramos a primeira
noite ao largo da pitoresca comunidade pesqueira de Seldovia e ali passamos a
noite sem desembarcar. Acordamos às quatro e meia da manhã seguinte e
“motoramos” ao redor da ponta “Adam”, fazendo assim proa a deixar as ilhas
“Chugach” a bombordo. O tempo estava bom, o mar bastante liso e quando
adentramos o primeiro fiorde de nossa aventura, o “Northwest Fiord”, todos
aqueles dias de muito trabalho e noites mal dormidas pois-nunca-fica-escuro fizeram
sentido de uma tacado só! ...Ô coisinha mais linda que é o gelo!
Aquele paredão azul
silencioso, aquelas montanhas nevadas se erguendo até onde dói o pescoço de
tanto olhar pra cima, aquele verde de inverno e todo aquele gelo e mais gelo
por ao redor do barco, aquilo sim fez o sangue correr nas veias verde-amarelas do
marujo aqui como há anos eu não sentia! Como é lindo esse encontro quase que
desafiante do homem com a natureza onipotente bem ali na vossa frente! E o
melhor é que o dono do barco queria mais e queria chegar mais perto e empurrar
gelo com a proa e, uma vez ali, foi pedido que o bote fosse lançado e lá me fui
com o proprietário, empurrando gelo e achando caminhos entre essas maravilhas
flutuantes para que o mesmo tirasse as fotos que vocês agora veem. Tudo bom
demais, fascinante demais e, quando a proa chegava perto daquelas paredes de
muitos mil anos de gelo sólido, gelado demais!
Havia focas a
descansar sobre o gelo flutuante, pássaros mil, a tal águia da cabeça pelada
símbolo dos Americanos (um animal bastante imponente devo dizer), baleias e
seus filhotes a nadar tranquilamente, golfinhos de coloração negra e branca e
bico bastante curto, peixe saltando por todas as partes, tudo muito
espetacular. E assim foi o ritmo e assim foi o tom de nossa viagem pelos
fiordes da península do Kenai. Todos os dias acordávamos bem de manhãzinha e,
com o potente motor Man de 6 cilindros turbo com seus velhos 400 cavalos de
potência, conduzíamos aquela embarcação histórica de madeira sobre as águas do
Alaska até outro fiorde e mais uma geleira e outra! Tinha dia que navegávamos a
3 fiordes diferentes um mais lindo que o outro e o barulho de trovão, o estouro
que no gelo faz quando se rompe, aquele tiro de canhão seguido do desabamento
de toneladas de gelo que levam cerca de alguns segundos após cair na água para
emitir o som perturbador de coisa-grande-caindo-na-água. As forças da natureza
se pronunciando e você ali, testemunha pequenina e humilde daquele espetáculo
natural, por vezes assustador, totalmente sem igual. Um privilégio, isso é
aquilo que essa viagem me foi.
A madrugada do dia 19
de julho foi-me especialmente marcante. Às 19:20h da noite adentramos uma baía
muito pequenina após negociar uma entrada até perigosa, eu diria. Uma “cove”
como chamam eles , localizada na parte sul de “Derickson Bay”. Haviam 3 metros
abaixo de nossa quilha e um longo cabo foi mandado à terra junto à minha pessoa
para evitar que o barco girasse sobre as rochas em todo o redor. Uma vez
seguramente amarrada a embarcação à duas árvores, aproveitei que ali estava,
puxei o bote sobre as rochas que a maré ainda baixa expunha e fui explorar aquele
lugar tão interessante. Mal havia rompido entre os ramos das árvores da subida
da costa, adentrei o campo nem 300 metros e lá estava o gelo, espalhado por sobre
a grama, amontoado junto à encosta dos pequenos morros. Havia até um rio que se
acumulava ali antes de seguir por terras mais baixas até o mar, não distante
nem meia milha. Era o lugar perfeito e madeira não faltava ali! Retornei ao
barco e chamei a todos, “temos de acampar aqui, o lugar é perfeito e temos tudo
o que precisamos a bordo!”. A turma meio
que não se animou muito e desconversou o caso. Eu, sendo como sou, insisti, mas
ninguém realmente se manifestou contra ou disse que sim. E terminou comigo num
clássico “então vou eu!” e fui-me. Agarrei o machado de emergência de bordo (no
caso um grandão de duas mãos bem daqueles bom de rachar lenha!), uma garrafa
grande de água, uma salsicha, uma cerveja (claro, né, gente, por favor!),
isqueiro, saco de dormir e pedi passe de desembarque pela noite.
-
Melhor que
tenha, jamais vi um!
E assim construí,
digo, arrastei umas toras, empilhei umas pedras, cortei várias madeiras que
achava secas e boas pra queimar, fiz fogo, preparei o espeto, assei a salsicha,
tomei a cerveja que botei pra gelar naquele gelo mencionado e acumulado lá;
dormi no saco de dormir abaixo das e observando as mesmas estrelas que o céu do
Alaska tinha para mostrar-me aquela noite.
Não vi urso algum, só
rastros dos mesmos quando explorava as redondezas do meu acampamento selvagem,
mas ainda assim foi ótimo! Barcos por vezes te colocam em situação de convivência
intensa com pessoas que não necessariamente se gostam o que, convenhamos, é
normal. Você não precisa amar seus companheiros de trabalho para realizar um
bom trabalho com eles. E se, todos gostarem de todos no grupo, ainda melhor,
pois o trabalho se realiza de forma mais leve, harmônica e divertida. Oras,
quem entre nós não gosta de trabalhar com amigos e afins?! Eu precisava de um
tempo a só comigo mesmo e também eles, a tripulação, precisava de um tempo sem
mim. Vento aqui nao há, exatamente como me disseram todos os pescadores e capitães
das balsas motorizadas de embarque-desembarque pela rampa da proa e rebocadores
que conheci em Homer e a turma da coberta não andava nada feliz com aquilo.
Nenhuma vela foi içada, a não ser por meia hora logo na saída do porto de partida e, após panejar a buja e a mezena por
alguns momentos, os poucos panos foram baixados e dali por diante apenas o
motor roncou e a hélice impulsionou e os dois geradores mantiveram tudo
funcionando, exatamente como eu havia preparado os mesmo para fazer com a
devida atenção e cuidados não havia nem um mês atrás... e eu estava bastante
feliz com aquilo.
A única coisa que não
funcionou mesmo foi a rapaziada dos serviços de imigração canadense a qual entrou
em greve pouco antes do Igor dar entrada no visto dele, o que não só rendeu uma
falta de visto de entrada para ele, como também atrasou a viagem do nosso
terceiro tripulante em mais de 20 dias, o que botou um peso muito maior nas
minhas costas pois o Capitão havia rompido suas próprias costas anos antes, não
podia pegar peso e sobrou pro meu lado e era comigo mesmo a parada. Por fim, o
barco foi, seguiu viagem e eu não pude seguir adiante até o Canadá. Cada qual
sabe porquê fazer ou entrar em greve e eu não culpo ninguém por isso. Aconteceu
justo quando era minha vez de ir navegar as águas deles e paciência. Devo dizer,
no entanto, que o pessoal da Embaixada Brasileira de New York me foi muito solícita
e prestativa, fornecendo-me a orientação necessária nas horas de dúvida e até indignação.
Não pude seguir adiante num trabalho o qual vim até aqui para realizar e isso
lá molesta, sabe?! Paciência...
Terminei não indo ao
Canadá, ao invés disso desembarquei no mesmo porto, dia e hora que o dono do
Nordwind e sua esposa, e após uma boa refeição num dos únicos restaurantes do
diferente entreposto de Whittier, subimos todos a bordo da histórica Ferrovia
do Alaska e, de trem, seguimos para a maior cidade do maior estado do pais com
mais Estados Unidos, lá mesmo onde tudo começou: Anchorage. Chegava ao fim mais
uma viagem... ou não!
Epílogo:
Comprei uma van verde metálica
bem da grande dessas americanas dos anos 90. Não era bem esse o meu plano, mas,
por 500 dólares, como é que o sujeito não compra uma van e roda o Alaska?!? Minha
querida namorada tirou um mês de ferias do Super-Yacht de 116 pés em que ela
trabalha como imediata e voou pro Alaska. Retornamos a Homer, botamos um colchão
de casal, lençóis e cobertores, dois travesseiros e fronhas que compramos no
Exército da Salvação por 25 dólares tudo e, agora, vivemos nosso amor pelos últimos
dias do verão dessa terra fantástica, livre e selvagem, ficando na casa dos
bons amigos que fizemos aqui, acampando, dormindo na nossa van, fazendo
fogueiras e churrascos na companhia de pessoas únicas e diferentes de todo
daquilo que conhecíamos. Pescadores comerciais, caçadores de alçes e ursos e
bodes montanheses e lobos e tudo o mais que o governo, com todas as restrições
e legislações possíveis, ainda deixa dar tiro nos bichos; gente que trabalha a
terra, que constrói casas de madeira, que opera pás-carregadeiras e outras máquinas
pra remover neve no inverno que eu sequer imagino, pilotos de hidroaviões desses
que tem aqui como eu nunca vi em lugar algum do mundo. E claro, cruzando a
sublime baía de “Kachemak” nos diferentes barcos dos amigos, comendo salmão e
mais salmão e... “– Quer mais salmão?!” .
Claro...
Há um barco esperando
por um marujo como eu na costa Leste do imenso país norte-americano. Há vários,
na verdade. Basta ir até lá, conhecer os marinheiros, conversar com as
tripulações, ser apresentado aos capitães, fazer os amigos que você nem sabia
que tinha e estavam lá esperando só você chegar. Por hora ficamos por aqui pois
aqui está bom. Mais um mês apenas e o frio e o gelo tomarão esse lugar e tudo
ficará escuro por muitos meses, melhor aproveitar essa inesquecível terra antes
que a longa noite cubra tudo, campo, montanha, mar e floresta, com sua gélidas
trevas. As flores estão por toda parte aqui para nos lembrar exatamente disso:
que depois de todo longo inverno vem sempre o verão, e o verão é a celebração
da vida em seu ápice, seu Solstício. Aproveite a vida enquanto o sol brilha e faz
calor!
Bons Ventos a
Todos.
Igor Mestriner
Agosto de 2013 – Homer -Alaska